Thursday, November 22, 2007

A Cidade




A vida bate

(Ferreira Gullar)



Não se trata do poema e sim do homem
e sua vida
- a mentida, a ferida, a consentida
vida já ganha e já perdida e ganha
outra vez.
Não se trata do poema e sim da fome
de vida, o sôfrego pulsar entre constelações
e embrulhos, entre engulhos.
Alguns viajam, vão a Nova York, a Santiago
do Chile. Outros ficam
mesmo na Rua da Alfândega, detrás
de balcões e de guichês.
Todos te buscam, facho
de vida, escuro e claro,
que é mais que a água na grama
que o banho no mar, que o beijo
na boca, mais que a paixão na cama.
Todos te buscam e só alguns te acham.
Alguns te acham e te perdem.
Outros te acham e não te reconhecem
e há os que se perdem por te achar,
ó desatino
ó verdade, ó fome de vida!
O amor é difícil
mas pode luzir em qualquer ponto da cidade.
E estamos na cidade
sob as nuvens e entre as águas azuis.
A cidade. Vista do alto
ela é fabril e imaginária, se entrega inteira
como se estivesse pronta.
Vista do alto,
com seus bairros e ruas e avenidas, a cidade
é o refúgio do homem, pertence a todos e a ninguém.
Mas vista de perto,
revela o seu túrbido presente, sua
carnadura de pânico: as
pessoas que vão e vêm que entram e saem, que passam
sem rir, sem falar, entre apitos e gases. Ah, o escuro
sangue urbano movido a juros.
São pessoas que passam sem falar
e estão cheias de vozes e ruínas .
És Antônio?
És Francisco? És Mariana?
Onde escondeste o verde
clarão dos dias? Onde
escondeste a vida
que em teu olhar se apaga mal se acende?
E passamos carregados de flores sufocadas.
Mas, dentro, no coração,
eu sei,
a vida bate. Subterraneamente,
a vida bate.
Em Caracas, no Harlem, em Nova Delhi,
sob as penas da lei,
em teu pulso,
a vida bate.
E é essa clandestina esperança
misturada ao sal do mar que me sustenta
esta tarde
debruçado à janela de meu quarto em Ipanema
na América Latina.

Thursday, November 15, 2007

O guarda-chuva e o individualismo

Dias de chuva sempre conduzem a boas reflexões. Aquele tipo de discussão, de que depende toda a sua vida, surge nesses dias. O guarda-chuva sempre foi um objeto incômodo para mim. Incômodo por denunciar demais. Eu o elegeria como o símbolo máximo do individualismo na sociedade. Quer algo mais individualista que um guarda-chuva? É anatomicamente feito para uma pessoa só. Não conheço ninguém que se sinta bem, dividindo um guarda-chuva, independente do tamanho deste. Não dá! A pessoa sempre reclama que está pingando nela. Então, você tem que se contorcer para dar para os dois. Por mais que você aceite a suposta solidariedade daquele que se propõe a dividi-lo com você, fica sempre aquela sensação de que “tem gente demais aqui!”. E há também o perigo potencial do dito cujo. Já perdi a conta de quantas pessoas quase ceguei andando com aquilo.

Acho que se pode dizer muito sobre quem consegue manejar bem um guarda-chuva. Para começar, essa pessoa é muito equilibrada física e emocionalmente. No mínimo. Nada de comportamentos demasiadamente passionais. Saber a hora certa de dar aquela sutil “viradinha”, para não esbarrar com o outro que vem em sua direção, é uma arte! Sem contar que é também um desejo subconsciente de não se misturar e evitar dirigir-se ao infeliz para pedir desculpas. É o tal do “comportamento de reserva” do Georg Simmel. Aquele mesmo que faz com que, às vezes, se torne tão difícil se dirigir ao padeiro às 7 da manhã ou segurar o elevador quando você tem a opção de um trajeto livre do silêncio constrangedor. Então passamos rapidamente uns pelos outros, fazendo um enorme esforço para não sairmos de nosso taxímetro mental. Não importa se você está parado no ponto de ônibus e há alguém secretamente desejando que você ofereça uma cobertura. Quem mandou esquecer o guarda-chuva em casa, hein? Não vivemos mais no tempo em que dividir um guarda-chuva era exatamente isso: dividir um guarda-chuva! Somos de um tempo que teme sociopatas, psicóticos, ladrões, muitas vezes vítimas e frutos do mesmo individualismo de aqui falo.

Cultivamos um olhar cada vez mais blasé em relação ao outro. Às vezes, um simples artefato do cotidiano e como fazemos uso dele pode denunciar a distância emocional em que nos encontramos. Talvez um dia passem a fabricar“guarda-chuvas solidários”. Até lá, vamos pegando chuva mesmo ou usando casaco com capuz, só para garantir. Ah e é claro que é muita falta do que fazer minha escrever um texto falando sobre o que eu acho do guarda-chuva. Mas é o que eu disse. Dias de chuva. Falta do que fazer, oficina da bobagem...E como disse o Cazuza, "o que salva a gente é a futilidade".